A estratégia do rei e as notícias boas
Por José Avelange Oliveira
Com que frequência verificamos, sobretudo no interior, campanhas de conscientização para o trânsito, para a alimentação saudável, para os cuidados com a pressão arterial ou com a saúde mental? Agora vamos observar como as notícias ruins circulam diuturnamente por toda parte, sem que quase ninguém se dê conta de que uma coisa pode estar diretamente relacionada à outra. Quanto menos prevenção e conscientização, em tudo, mais problemas. Entretanto, as pessoas se habituaram a fazer alardes ou a entrar em pânico, depois que as coisas ruins acontecem.
Uma fábula de domínio público conta que, num reino distante, transeuntes encontraram, certo dia, uma enorme pedra atrapalhando a passagem, em uma das estradas principais, e todos os que se deparavam com a situação esbravejavam, procuravam culpados, avançavam com dificuldade e seguiam adiante, intrigados com aquilo: “Quem poderia ter se prestado a tamanho desserviço?” Somente uma moça simples, a filha do moleiro, já no fim do dia, se dispôs a remover a pedra, sozinha, pois não pensou apenas em si mesma, mas também naqueles que passariam depois, quando anoitecesse. Embaixo da pedra, a jovem encontrou uma caixa contendo ouro, que havia sido deixado propositadamente pelo rei, para aquele que, em vez de apenas reclamar, retirasse a pedra do caminho, pois ele era um monarca conhecido pela sua sensatez e por seus esforços, no sentido de educar o povo.
De maneira semelhante à dos transeuntes que, na fábula, vieram antes da jovem corajosa, muitas pessoas vão trilhando os caminhos da sociedade pelas brechas que sobram, sem querer gastar tempo para remover entulhos e compreender as causas das situações que mais atormentam a todos.
Frente ao imobilismo que toma conta da maioria, as instituições capazes de congregar pequenas multidões, os sindicatos, as igrejas destas cidades subdesenvolvidas podem – se quiserem – ajudar a população a sair da ignorância e da preguiça de pensamento que, em última análise, é a nascente de toda sorte de problemas coletivos e até individuais.
É inegável que existe uma ou outra ação bem intencionada, aqui ou acolá, mas infelizmente, a mobilização permanente e mais eficaz parece ainda longe de se tornar prioridade, porque é muito mais fácil, em inúmeros lugares, se fazer apenas o que sempre se fez, em nome dos costumes e das tradições que nunca deram conta, por si mesmas, de construir sociedades mais equilibradas.
Não se trata, com isso, de negar o valor aos costumes e às tradições que o merecem, mas de se procurar examinar se longas procissões, cultos ruidosos ou meras festas de trabalhadores em datas especiais bastam realmente para que todos tenham a qualidade de vida a que têm direito e para que a sociedade seja um ambiente seguro de se viver e de se crescer, porque já diz a própria sabedoria popular que “água parada apodrece”.
Existem aqueles, porém, que rejeitam em maior ou menor grau as águas novas e os ventos novos, não porque não sejam capazes de reconhecer a importância de novas atitudes, mas porque isso implica, muitas vezes, em abandonar privilégios, proteções que, mormente em cidades do interior, contribuem para a escassez de iniciativas fundamentais à prevenção da violência e à promoção da saúde coletiva e de tantas outras coisas capazes de resultar em notícias boas.
A palavra mágica dos novos gestores e legisladores
Os agentes políticos que guardarem consigo este acróstico (...) podem entrar para a História.
Por José Avelange Oliveira
O ano de 2013 amanhecerá sob a expectativa comum quanto ao que será feito destes nossos municípios, Brasil afora, especialmente aqui, no semiárido baiano, onde possivelmente a ansiedade do povo é proporcional à intensidade do verão. Mas os ares de mudança na política regional só se converterão em atitudes diferenciadas com muita força de vontade dos eleitos e, mais ainda, com muita vigilância da população, porque ao que tudo indica, em política, assim como na vida, parece mais fácil errar.
Acontece que existem erros e erros. Alguns são inaceitáveis, enquanto outros precisam ser, se não tolerados, pelo menos, compreendidos, porque dificilmente um mandato de vereador ou de prefeito será irretocável, do começo ao fim, e apesar de se acreditar que os governos podem tudo, limitações existem, tanto do ponto de vista dos recursos materiais quanto humanos.
Os marinheiros de primeiro mandato, por exemplo, conhecerão pressões de toda a sorte, tendo, muitas destas pressões, origem na própria campanha eleitoral, de forma que aqueles que se comprometeram menos com as vontades particulares de seus apoiadores têm mais chance de acertar.
Em nossa região, uma das coisas que mais prejudicam, até mesmo os projetos políticos bem intencionados, é uma espécie de ignorância geral quanto ao funcionamento de um município, e engana-se quem pensa que apenas o povo desconhece as engrenagens do poder. Uma boa parte dos eleitos se acham na mesma situação.
Quando me elegi vereador, em 2004, por exemplo, logo me jogaram no colo uma Comissão Especial de Inquérito, sem que eu tivesse a formação devida para um trabalho tão complexo. As pessoas, por aqui, pensam que ignorante é gente bruta e analfabeta, mas admitir que se ignora determinados ramos do conhecimento humano é fundamental, mesmo para quem possui razoável nível de instrução. Os senhores vereadores, prefeitos e secretários, vêm pensando em suas ignorâncias?
Os novos governos municipais precisam se convencer de que eventualmente começarão a trabalhar com gente que não sabe, que sabe pouco ou que não se interessa em conhecer a fundo os trâmites, as formalidades do poder, e pior ainda, desconhecem ou mal conhecem os princípios da Administração Pública. Este é o terreno fértil para os primeiros problemas. É claro que essa situação não é a regra, mas convenhamos que muita gente é nomeada para cargos de confiança, segundo critérios pouco técnicos e são estas pessoas que participarão diretamente dos processos decisórios capazes de configurar a cara do governo e a cara do povo, porque o povo logo faz careta, quando a gestão não sai do jeito esperado. O segredo é chamar esse povo para decidir junto.
Um governo bem sucedido, porém, não é aquele que faz apenas o que o povo quer, porque a população, apesar de exercer, em tese, o poder, não é sempre capaz de reconhecer as medidas prioritárias para seu município. Às vezes, gestores e legisladores precisam ter coragem suficiente para contrariar o senso comum, tomar iniciativas que possam ser conflitantes com o aparato burocrático.
Nesses casos, o melhor é lançar mão do diálogo com representantes do maior número possível de comunidades, setores sociais e categorias profissionais, a fim de explicar exaustivamente a situação, tudo isso sem se esquecer de convocar a imprensa. A informação sã deve chegar antes dos boatos, porque, nada mais prejudicial para um mandato quanto os boatos que tomam o lugar da informação verdadeira. Em cidades como as nossas, o disse-me-disse pode crescer a tal ponto que, depois disso, informem o que informarem, os mais céticos sempre divulgarão o pior, conforme seus interesses de grupo.
Mesmo que seja chover no molhado, nunca é demais recomendar aos novos ou velhos mandatários a palavrinha mágica l-i-m-p-e, que sintetiza alguns princípios básicos da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e economicidade. Os agentes políticos que guardarem consigo este acróstico, desde o começo, e vierem a consultá-lo, a cada decisão, podem entrar para a História, por apresentarem uma feliz contribuição ao desenvolvimento humano e social destas terras secas e cheias de interesse pelo progresso.
Disponível em www.agbook.com.br
A TARDE - Letrológo, professor, escritor, revolucionário, católico e solteiro. Quais destas qualidades José Avelange mais se identifica?
JOSÉ AVELANGE - Minha vida compreende muitas idas e voltas e isso me propiciou o gosto por analisá-la, segundo aquela concepção socrática de que uma vida não analisada não vale a pena ser vivida. Eu fui um seminarista brevíssimo de pouco mais de um ano, no seminário. Foi uma das experiências mais ricas que fiz, na medida em que me possibilitou conhecer famílias religiosas constituídas por gente que forma um verdadeiro mosaico, com suas qualidades e defeitos. Conheci muita gente boa, nesse período, e no período anterior, da atuação no serviço pastoral. Sou solteiro, como milhares de outros solteiros que existem no mundo. Não faço propaganda deste estilo de vida, porque cada um sabe de si, mas entendo que existe uma hipervalorização ou idealização do casamento, que chega a oprimir quem decide tomar rumos diferentes. Não pretendo questionar o valor religioso do casamento, mas acredito que as coisas seriam mais simples, se o casamento fosse encarado em nossa sociedade como aquilo que é, dentro dela, como um fato social. Assim muitas pessoas não teriam que se obrigar a certas exigências da vida a dois, apenas porque a maioria se casa. Portanto, o que caracteriza essencialmente a experiência humana não pode ser um estado civil, independentemente da nomenclatura que se dá a cada um deles. Celibatário e solteiro são a mesma coisa, mas quando se diz celibato as pessoas pensam logo em beato, numa concepção que se tornou um tanto pejorativa. Eu sou um aprendiz de poeta permanente e a poesia permeia todo o resto da minha experiência. Penso que me identifico com a poesia e por necessidade faço algumas outras coisas nas quais tento colocar poesia também.
A TARDE - O que cada uma delas representa para você?
JOSÉ AVELANGE -Ser professor é participar diretamente da construção humana de gente que em princípio não é nossa família, mas que termina sendo, porque nós, professores, vivemos o mesmo inacabamento humano junto com os aprendizes. A educação compreende um encontro de imperfeitos, em que cada parte envolvida ora sai ganhando, ora sai perdendo, tal é a complexidade dessa relação, dentro de condições tão limitadas de formação, de recursos, de motivação. Mesmo assim, trabalhar com educação é fascinante, justamente pela possibilidade do exercício constante da criatividade, da paciência, da compreensão e da inventividade. Quanto ao revolucionário, prefiro Gandhi a Che Guevara. O mundo continua precisando de revolução, mas penso que está inscrito no coração das novas gerações que certos métodos passados não têm mais lugar. Isso, à primeira vista, parece se confundir com certa indolência, mas se houver lideranças para mobilizar a juventude a iniciar uma transformação pacífica, vai ser formidável. O Forum Social Mundial já é um começo bem interessante. A militância na Pastoral da Juventude me ajudou a conhecer os caminhos possíveis para o exercício da liberdade, para o incentivo à libertação dos oprimidos e, nesse processo, foi ficando claro para mim que determinados métodos de libertação defendidos com veemência por certas lideranças podem causar dissensões vazias, desarranjos inúteis. Eu aposto na sutileza da formação constante para um outro mundo possível. Isso talvez se faça esbravejando menos e mobilizando mais, a partir das escolas e das Igrejas. Ser católico, para mim, é procurar recuperar a própria ideia implícita nessa palavra (católico), que significa o todo, mas o todo não exclui o diferente. Infelizmente, a Igreja Católica ainda tem dificuldade de fazer valer seu próprio nome. Talvez até deseje incorporar o diferente desde que o diferente se submeta a ser igual. Via de regra, as religiões se comportam assim. Em muitas situações, o clero parece negar o rosto alegre e acolhedor de Jesus para com todos, enfiando-se em vestes pretas, que em tese seriam uma predileção pelo anonimato, quando na verdade os representantes do Vaticano desfilam mídia afora, por vezes até fazendo pregações que não conseguem ser melhores do que o próprio silêncio. Em muitos casos, a Igreja assume a feição das instituições mundanas, o que de fato ela é, com alguns bons exemplos remanescentes, mas, como diz Leonardo Boff, ao menos não nos impede de, dentro dela, ter acesso ao Evangelho e descobrir também como Jesus é. Quem faz esta descoberta age com liberdade e não se submete aos caprichos institucionais.
A TARDE - Como define o mundo das Letras em sua formação?
JOSÉ AVELANGE - Desde a adolescência, eu era um pouco autodidata, mesmo dentro da escassez de livros em que vivia. Ao lado da minha casa, num pequeno sítio, havia uma escola. Durante as férias, eu ia para lá e ficava lendo as revistas enviadas pelo MEC, que eram empilhadas em caixas e ficavam ali, quase sem serventia. Posteriormente, na sétima série, conheci um pouco dos clássicos da literatura nacional por meio dos fragmentos que vinham nos livros de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira distribuídos pelo governo. Aquilo me tocava tão profundamente que ainda hoje sou capaz de lembrar alguns trechos de Jorge Amado e de Machado de Assis, que eu decorava, por achar bonito, sem jamais ter recitado para ninguém. Um trecho de O Bem Amado, de Dias Gomes foi trabalhado em sala de aula e me despertou também o gosto pela dramaturgia. Com o tempo, pude fazer leituras mais completas, mas a militância religiosa e política nos primeiros anos da juventude me introduziram num ativismo muito grande que prejudicou um pouco o propósito de ler as obras literárias indispensáveis. Procuro corrigir isso, na medida do possível. Eu só vim cursar a faculdade de Letras muito tempo depois, quando já tinha sido aprovado em outros vestibulares e abandonado tudo, para entrar no Vocacionário. Quando saí da experiência religiosa, eu senti que era preciso dar mais atenção ao aspecto profissional, porque agora seria eu e eu mesmo, eu e Deus. Então, optei pela Faculdade de Letras com habilitação em Língua Inglesa. Eu gosto da atividade de tradução, embora não tenha me dedicado a isso deliberadamente.
A TARDE - Dentro do catolicismo você tem uma religiosidade muito forte, e no catolicismo segue a Teoria da Libertação. Assim, você se identifica mais com o catolicismo ou com a essência da Teoria da Libertação?
JOSÉ AVELANGE - Hoje penso que a Teologia precisa se libertar dos rótulos. É evidente que existem concepções teológicas mais ou menos afinadas com o Concílio de Trento e outras que refletem as inovações propostas pelo Concílio Vaticano II. Nestas últimas, encontro muito mais eco em relação àquilo que Jesus Cristo propõe, nos Evangelhos. (Note-se bem que Jesus propõe, enquanto há teologias que impõem em nome dele). Eu aprendi esse jeito libertário de viver a fé, aos dez anos de idade, quando um punhado de religiosas do Sul do país veio em missão para a minha comunidade, na região entre as cidades de Tanquinho e Candeal. As irmãs nos ensinaram a rezar a nossa própria realidade de um jeito que ninguém havia feito, ao longo de décadas, junto àquelas povoações esparsas do semiárido. Ninguém falava qual era o nome daquela teologia e eu mal sabia da existência de teologias, mas tudo funcionava muito bem, a não ser para os mandatários de Tanquinho, afeitos ainda ao coronelismo. Foi quando ouvi falar pela primeira vez em reforma agrária, em povo de Deus que tem direito à terra, ao pão e consequentemente à paz. Agora, como no passado, há disputas teológicas, nomenclaturas diversas, acusações mútuas. Confesso que às vezes me sinto cansado disso tudo e penso que o fundamental é não ser fundamentalista em nenhuma direção. Basta regar a utopia todos os dias, recordar sempre a opção preferencial pelos pobres, procurar um jeito concreto de vivê-la e esquecer os rótulos, porque isso pode perturbar as energias interiores e enfraquecer as boas lutas. Sinto as lutas do povo de Deus enfraquecidas, nos últimos tempos e isso é ruim, retarda o progresso humano e social.
A TARDE - Porque deixou o sacerdócio?
JOSÉ AVELANGE - Ao contrário do que as pessoas imaginam, eu não fui para o Vocacionário, que é o ambiente formativo da Congregação dos Vocacionistas, para ser padre. Eu fui para lá, encantado pelo ideal do fundador Giustino Russolillo, um italiano do século passado que criou com muita sensibilidade um instituto religioso destinado a ajudar as pessoas a descobrir o sentido de suas vidas na união com Deus, como fonte de amor e de sentido. Nessa perspectiva, eu seria apenas religioso vocacionista, optando pela não ordenação, como faziam os primeiros franciscanos. No interior da instituição religiosa, seja ela qual for, a pessoa descobre as contradições das relações que se estabelecem entre os diversos atores do processo. Existem candidatos à vida religiosa que conseguem conviver muito bem com estas contradições ou se obrigam a elas, por convicção férrea ou por fragilidade de decisão. Eu compreendi que eu poderia viver os valores do Evangelho sem precisar me submeter a determinadas vontades que, passando-se por divinas, são muito mais humanas, caprichos de pessoas afeitas a exigir obediências que nem sempre cumprem, elas mesmas. Mas isso não é um problema específico dos vocacionistas, e sim da própria vida religiosa institucionalizada. Se alguém se dá bem com ela, eu respeito e até admiro, mas o meu perfil inventivo, se é que posso dizer assim, não cabe direito na proposta das diversas congregações obrigadas por preceitos canônicos a regular a existência de quem se aproxima, segundo certas cláusulas pétreas, muitas das quais não encontram suficiente base no Evangelho.
A TARDE - Por que ser celibatário (solteiro)?
JOSÉ AVELANGE - A gente nasce, cresce e renasce solteiro, no fim. O casamento deveria ser muito mais resultado de um encontro profundo entre duas pessoas do que um fato social. Esse encontro profundo dificilmente é uma escolha consciente. Para alguns acontece mais cedo, para outros, mais tarde. Para outros, ainda, parece nem acontecer. Independentemente disso, as pessoas se casam. A humanidade precisa seguir adiante. Se todos fossem tendentes ao celibato, conforme a influência do pensamento de Santo Agostinho sobre o mundo ocidental, valorizada até hoje em determinados discursos católicos, não sei como estaria nossa taxa de natalidade. Portanto, não é que eu seja avesso ao casamento e defensor intransigente do celibato, como muitos chegam a pensar. Eu sou adepto da espontaneidade da afetividade humana e lamento a ânsia de genitalidade que tomou conta das pessoas ultimamente, por influência dos conteúdos midiáticos que apelam para isso o tempo todo. Eu sou um entusiasta do amor entre as pessoas e penso que as manifestações genuínas de amor suprem o impulso irrefletido pela perpetuação da espécie, que é o que move inconscientemente os menos reflexivos a essa busca desenfreada por acasalar, como se estivessem buscando a própria felicidade. Ora, a espécie humana não me parece em perigo de extinção, família é algo que se faz onde há gente de boa vontade que cria vínculos profundos e se doa pelo bem de todos. É por isso que comumente ouvimos alguém dizer que tais e tais pessoas com as quais não possuem nenhum laço sanguíneo se tornaram gente da família. Evidentemente a vida de solteiro exige muito cuidado, a fim de não se cair em armadilhas e promiscuidades. A sexualidade e a afetividade podem se converter em instrumentos para ferir os outros e a si mesmo, de forma mais ou menos consciente. Solteiros e também os casados, quando não sabem lidar com essas dimensões, tornam-se ocasiões de sofrimento para os demais evolvidos em suas relações afetivas. A minha forma de me organizar e me integrar como pessoa é sendo solteiro, mas isso não é uma espécie de pacto ou coisa parecida nem é determinação da Igreja, como acontece com os padres, em geral. É uma decisão tomada livremente que pode ser mudada livremente. Isso não empobrece minha experiência de vida, como as pessoas mais hedonistas podem imaginar. Oferece-me certa liberdade de que preciso para construir a experiência humana que escolhi, até aqui. Na verdade, eu venho construindo uma comunidade filosófica baseada nos valores cristãos, mas é um processo lento, porque não é muito fácil encontrar pessoas que comunguem do mesmo interesse, mas elas existem. Deus pode providenciar.
A TARDE - Hoje o que dá sentido a vida de José Avelange?
JOSÉ AVELANGE - O que dá sentido à vida de qualquer ser humano que crê é saber-se criado e amado por Deus. O que não crê pode descobrir isso mais tarde ou não descobrir nunca, nesta vida. Sentir que não fomos colocados a esmo sobre a face da Terra é resultado de uma arte em que venho persistindo. Isso pode até estar fora de moda e parecer careta para quem escreve e se define como inventivo, mas é precisamente a minha inventividade que me leva a supor que a trajetória de qualquer um neste planeta não pode ser algo fora de propósito, destinado a se dissipar com o pó. Então, primeiro encontro o sentido em mim mesmo, nessa noção do infinito que Deus colocou em nós, sendo nós finitos, conforme observou o escritor Victor Hugo, e depois, encontro sentido nas outras pessoas com quem convivo e trabalho. As amizades provêem aquilo de que preciso para seguir caminhando, mas com isso não quero dizer que para todo mundo deva ser assim. O importante é que cada um encontre uma forma própria de achar sentido e que os que o encontrem de forma semelhante se congratulem nisso.
A TARDE - O que Avelange mais repugna? E o que mais aprova?
JOSÉ AVELANGE - Uma coisa que me tira do sério é a injustiça. Eu procuro ser justo na pequena parte das coisas que me cabe e me sinto atingido pela injustiça, mesmo quando é impingida aos outros, longe ou perto. Tenho grande apreço pela justiça em seu sentido mais completo, que é o de dar a cada um aquilo que é seu, por direito. Como diz a canção dos Heróis da Resistência, que eu escutava, nos anos 1990, eu me vejo “chorando em frente a televisão”, quando mostram pessoas sofrendo muito, ou quando situações de sofrimento são solucionadas em programas de auditório, desaparecidos que se reencontram, projetos comunitários que dão certo, etc. A televisão de vez em quando pinga umas gotinhas de coisas interessantes. Eu me emociono com isso. A equidade nas relações humanas é muito agradável e bonito.
A TARDE - O que é ética para você?
JOSÉ AVELANGE - É avaliar a própria conduta, educar a própria vontade e desenvolver a capacidade de se colocar no lugar dos outros, principalmente isso. Como a ética toca os valores e os costumes, é prudente analisar aspectos como o tempo e a cultura em que se vive. Há pessoas que, em nome da ética, tornam-se rígidas demais para consigo mesmas e com as outras. Vale o seu ponto de vista e de mais ninguém que pense diferente delas, porque para elas a ética é a sua ética pessoal e fora disso não existe salvação. É o tipo Vervain do sistema do Dr. Edward Bach. É fácil encontrar pessoas que se enquadram nesse perfil, cheias de boas intenções, nas lutas sociais, mas muito intolerantes, sob a justificativa de que estão com a razão. Precisam de ajuda para se reconhecerem como tais e melhorarem, sem precisar abrir mão da utopia que tiverem.
A TARDE - Como define o papel do capitalismo na sociedade atual?
JOSÉ AVELANGE - O capitalismo torna tudo velho do dia para a noite, a fim de levar as pessoas às compras e as pessoas vão, hipnotizadas, alimentando o sistema, sem questioná-lo. E quem está ensinando as pessoas a questioná-lo? A televisão? A Igreja? A escola? Há situações em que alunos se voltam contra o professor porque ele aborda questões políticas em sala de aula, questiona o sistema. As crianças e os jovens estão pensando que está tudo bem. Eles vêem o sol nascer todos os dias, apesar das notícias sobre alterações climáticas, eles vêem pessoas muito pobres e outras muito ricas ao seu redor, eles entendem que isso é absolutamente natural, desde que o mundo existe. Pensam que a caridade individual é o remédio para a pobreza extrema e que, aquilo que a caridade não resolve, é porque é insolúvel mesmo. Todo o resto faz parte de um discurso político que eles não compreendem nem querem compreender, pois precisam buscar urgentemente o padrão de vida dos personagens dos filmes e das telenovelas. O capitalismo está tragando o que sobrou do planeta e não se vê perspectiva, em curto prazo, de se interromper essa forma predatória de produção. É preciso incentivar com urgência as iniciativas tímidas que vão na direção contrária.
A TARDE - Como define os conceitos: política, cidadania e democracia?
JOSÉ AVELANGE - Em seu livro Conversas sobre Política, Rubem Alves procura recuperar o conceito original de política que surgiu na Grécia e traz a imagem belíssima da política como a arte de cuidar dos jardins. Os jardins estão fora de nós, mas também dentro de nós. Os jardins físicos ou não estão mal cuidados. Política é essencialmente a capacidade de perceber as flores murchas, os canteiros sem graça, sejam da praça ou da vida das pessoas, e começar a recuperá-los, incansavelmente. A cidadania está compreendida nisso também. Só será possível politizar o povo, levá-lo a votar bem, na medida em que se dê às pessoas a possibilidade de se tornarem cidadãs participantes. Com isso, elas entenderão a política como uma coisa boa e a democracia ganhará mais qualidade, porque hoje o que acontece é que uma maioria sem a devida maturidade política conduz ao poder, principalmente em cidades do interior, verdadeiras aves de rapina que conquistam eleitores à base de cerveja e música de baixo nível.
A TARDE - Como analisa a política brasileira e a de sua cidade?
JOSÉ AVELANGE - Lamento profundamente que a reforma política não tenha sido feita, de maneira que o que assistimos neste país é ao desfile de toda a sorte de vícios, envolvendo agentes públicos desde os mais altos cargos até os simples servidores com quem temos contato direto. Costumo dizer que corruptos não vêm de Marte nem de nenhum outro planeta, eles e elas são gente comum, que saem de suas famílias de suas comunidades e são alçadas pelo voto do povo ou por outros meios diversos ao exercício de determinados cargos feitos para servir à coletividade, mas seus titulares se servem desses cargos para atender a interesses estranhos ao bem comum. Não é que a corrupção típica da natureza humana sirva para justificar os recorrentes casos de desvios de verba, favorecimento pessoal, etc. É que me parece inútil ficar esbravejando diante destas situações, sem luar por mudanças estruturais. Vejo todo esse quadro com preocupação, mas existem iniciativas escassas que animam, tais como a organização de entidades civis capazes de ajudar as pessoas a entender o funcionamento dos poderes e a exigir deles que cumpram sua função segundo os preceitos constitucionais. Conheço políticos que fazem a diferença nessa conjuntura e muitos outros podem surgir. Quanto mais se diz que o problema não tem solução mais longe a solução fica e há quem se beneficie desse fenômeno.
A TARDE - Como deve ser o Brasil e a cidade que você deseja?
JOSÉ AVELANGE - Deve ser como a visão profética de Isaías. Ele nos fala de um povo feliz com seu Deus e que, entre esse povo, não haverá mortalidade infantil e quando alguém falecer aos 100 anos ainda será considerado jovem. É o melhor modelo de sociedade que conheço, está na Bíblia, em Is 65, mas as pessoas estão muito habituadas a disputas religiosas e políticas, de maneira que o sonho do profeta parece muito distante.
A TARDE - Terapeuta holístico, porque a escolha?
JOSÉ AVELANGE - Na adolescência, eu era muito ansioso. Uma tia minha que mora em Salvador me encaminhou para um psicoterapeuta e, após conversar comigo, ele me disse que receitaria uns florais de Bach. O nome daquele medicamento me soou como música, porque eu me lembrei do compositor famoso, embora o nome dos remédios se refira ao Dr. Edward Bach, que descobriu as essências florais. O fato é que me pareceu que já comecei a melhorar, naquele momento. Fiz uso dos florais e consegui controlar melhor minhas emoções. Desde então, fiquei me perguntando sobre o poder sutil daquelas essências. No mundo tumultuado da política, compreendi a falta que faz o equilíbrio emocional entre as pessoas e que eu poderia contribuir modestamente para isso. Meu irmão mais novo morreu em decorrência de um acidente de carro, em 2007, e eu entrei num intenso processo de busca, no sentido de amenizar a própria dor e poder auxiliar as outras pessoas que enfrentassem situações parecidas. Passei então a estudar de maneira formal a Terapia Floral e continuo estudando outras terapias complementares. Como as pessoas não sabiam desse meu interesse antigo e conhecem mormente minha atuação política, algumas se surpreenderam, mas eu diria que segui apenas uma inclinação interior e anterior a todas as outras experiências profissionais.
A TARDE - Num mundo capitalista, atribulado e neurótico. Por que a Terapia Holistíca?
JOSÉ AVELANGE - Justamente por isso. A vida no planeta está nos cobrando um retorno ao começo, ao sentido inicial da criação. A terapia holística aponta para esse sentido, sem o qual as pessoas adoecem junto com a sociedade, ou a sociedade adoece junto com as pessoas – é uma relação de interdependência mesmo. Eu faço inclusive um esforço considerável para que o ativismo não me vença, nesse meio, e que eu possa militar por uma sociedade mais justa sem perder o equilíbrio interior e que possa ajudar as outras pessoas a fazer o mesmo.
A TARDE - Quantos livros já escreveu?
JOSÉ AVELANGE - Escrevi um primeiro livro que era uma espécie de diário com tópicos de reflexão, mas não publiquei, porque me pareceu muito autobiográfico e eu penso que falar de si mesmo pode nos conferir um certo ar de pretensão. Publiquei um livro de crônicas literárias, Faça a Vida Sorrir, pela Virtual Books, e um livro de reflexão, Busque a Leveza da Vida, que está prestes a ser lançado, pela mesma editora. Estou revisando os originais de um livro de poesia e escrevi alguns roteiros para vídeo que foram produzidos nos anos 1990, pela Pastoral da Juventude, com a indispensável colaboração de José Fernandes Bobó, uma pessoa que possui o maior acervo de imagens de Riachão do Jacuípe, com toda a sua riqueza natural, secas, enchentes, animais e pessoas. Acredito que esse acervo merece ser conhecido e apreciado. Quanto a escrever, sinto que tenho muito a aprender ainda e muito a escrever também.
A TARDE - Do que se trata o livro, Busque a leveza da vida?
JOSÉ AVELANGE - É um conjunto de reflexões que partem, cada uma, de uma palavra positiva, de uma virtude ou qualidade a ser desenvolvida. Eu comecei a escrever esse livro há cerca de quinze anos e mantive o projeto engavetado, não apenas por dificuldades de publicação, mas também porque tive receio de parecer que dou conselho às pessoas. Hoje penso que amadureci à base das experiências vividas, a ponto de não dar conselhos propriamente, mas evidenciar aos interessados as particularidades dos caminhos que se podem trilhar. Após os trinta anos de idade, quem exerce um olhar menos superficial sobre as coisas pode ter algo interessante a dizer. Eu revisei impressões do passado, atualizei pontos de vista e apresento de maneira simples algumas conclusões que podem de fato tornar a vida mais leve, mas dependerá sempre da vontade de cada um.
A TARDE - E você, o que busca da vida?
JOSÉ AVELANGE - Busco a leveza da vida também. Meu livro não é uma receita pronta. Viver a vida com leveza não significa abrir mão das responsabilidades e dos compromissos que em geral não são tão leves assim. Mas alguém que é engajado, sério naquilo a que se propõe, como eu procuro ser, não precisa ser pesado nem aceitar o peso que os outros tentam lhe impor. Eu sempre me perguntei por que Jesus afirma, no Evangelho, que seu jugo é suave e seu peso é leve, enquanto muitos daqueles que se aventuram a representá-lo impõem fardos pesados aos outros. Coisificam a mensagem de Jesus, cobram, acusam, condenam. Com isso, eu não estou querendo dizer que cada um pode fazer o que der na teia, prejudicar os outros à vontade e contar sempre com a aprovação de todos, mas está claro que, querendo formar um ser humano melhor, os aparelhos ideológicos como a família, a Igreja e a escola podem deformá-lo. Eu busco, ao contrário, um estilo de vida que me proporcione a leveza da liberdade que me é necessária para fazer o bem. Se alguém tenta incutir nos outros o apreço pelo bem de maneira intransigente isso já é um atestado de que não aprendeu a sutileza da paz e quer promover a paz, à força. As instituições estão cheias de gente assim, que cobra publicamente dos outros, com mais ou menos rigor, aquilo que em particular não cumprem.
A TARDE Como define o dom de viver?
JOSÉ AVELANGE - Viver deve ser interagir com os outros, nos mais diversos níveis. Só é possível compreender a si mesmo, olhando os outros, interagindo com eles. No semelhante está uma espécie de mapa do tesouro que há em nós mesmos, daquele tesouro interior de generosidade e possibilidades depositadas por Deus. Nos outros, vemos os defeitos que são nossos mesmos e então podemos decidir entre apenas acusar os outros ou procurar corrigir a nós mesmos, nos precaver de atitudes infelizes ou repeti-las com quem acha bonitas as leviandades de terceiros. Nos outros, vemos acertos e podemos decidir entre apenas ficar com inveja, negar o reconhecimento que eles merecem, ou tomar suas iniciativas e maneiras de ser como inspiração, até um dia poder dizer-lhes: “muito obrigado, porque seu exemplo me inspira a ser melhor”. Viver é não se fechar na falsa percepção de que já entendeu tudo e ter ao menos o bom senso de supor o infinito que há por descobrir e viver. Viver, de fato, não é tão fácil, mas não deve haver alternativa melhor. É viver vivendo.
Censo 2010. Uma família plural, complexa e diversa
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Entrevista especial com José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi.
"A sociedade brasileira mudou em termos demográficos e na composição plural das relações familiares. Os diferenciais de gênero e de geração são fundamentais para se compreender a complexidade e a diversidade das relações familiares do Brasil contemporâneo", afirmam o/a pesquisador/a.
Indagados a respeito das principais conclusões a que chegaram em relação à família brasileira no estudo recente que realizaram com base no censo de 2010, José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, dizem que a primeira grande mudança foi a redução do arranjo majoritário formado por casais (núcleo duplo) com filhos. “Em números aproximados, este tipo de família estava presente em cerca de dois terços (66%) dos domicílios, em 1980, mas caiu para algo próximo de 50% em 2010. Isso aconteceu porque os pais, tendo menor número de filhos e maior esperança de vida, vivem mais tempo na fase do ‘ninho vazio’, pois os filhos tendem a sair da casa de seus progenitores para formar uma nova família, para morar sozinhos ou para formar arranjos domiciliares com pessoas não parentes”, frisam.
Para eles, o casamento é praticamente um evento universal no Brasil, mas somente se considerarmos todos os tipos de matrimônio. “Em 1970, 65% dos casamentos aconteciam no civil e no religioso, 14% somente no civil, 14% só no religioso e 7% eram uniões consensuais. Em 2010, o casamento no civil e religioso caiu para 43%, só no civil aumentou para 17%, só no religioso caiu para 3% e as uniões consensuais subiram para 37%”.
José Eustáquio Diniz Alves é doutor em Demografia e professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Suzana Cavenaghi é doutora em Demografia e professora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE. Os entrevistados esclarecem que nesta entrevista apresentam seus pontos de vista em caráter pessoal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram as principais mudanças ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O Brasil passou por grandes transformações econômicas e sociais no século XX, deixando de ser uma sociedade predominantemente rural e agrária, para se tornar uma sociedade urbana com predominância econômica da indústria e do setor de serviços. Nas últimas décadas, houve mobilidade ocupacional, espacial e social, assim como a construção de uma sociedade de consumo de massa. As relações entre as classes mudaram e o Brasil se tornou uma democracia política e cultural (mesmo com as diversas limitações). A transição demográfica reduziu as taxas de mortalidade infantil, aumentou a esperança de vida e reduziu as taxas de fecundidade. Isso provocou uma mudança da estrutura etária e o Brasil está deixando de ser um país com alta predominância de jovens para se tornar um país com elevada proporção de idosos. Houve também uma mudança das relações de gênero com maior empoderamento das mulheres e um lento, mas contínuo, processo de despatriarcalização da sociedade. Tais transformações tiveram um grande impacto sobre a forma de estruturação das famílias e sobre a dinâmica dos arranjos domiciliares.
IHU On-Line – Como essas transformações econômicas, sociais e demográficas afetaram a organização das famílias brasileiras?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O primeiro e maior impacto foi sobre o tamanho dos arranjos familiares. A família numerosa, que era muito adaptada às condições da sociedade rural, quando havia ampla disponibilidade de terras, deixou de ser funcional na sociedade urbana, onde a inserção dos filhos na produção econômica passa pela intermediação do mercado de trabalho e pelos filtros das exigências educacionais e dos padrões de produtividade da economia urbano-industrial. A formalização do emprego ocorreu juntamente com a ampliação da cobertura da previdência social. Neste processo de mudança do modelo centrado na família ao sistema de inserção produtiva e proteção social público e institucional, há uma tendência de aumento do custo dos filhos e de redução dos seus benefícios. Como teoriza o demógrafo australiano John Caldwell, estas transformações provocam uma reversão do “fluxo intergeracional de riqueza”. Os filhos deixam de ser “a galinha dos ovos de ouro” dos pais e passam a acumular maiores custos econômicos e a reduzir os benefícios. Isso modifica o regime de fecundidade e a dinâmica entre as velhas e as jovens gerações. Também abre espaço para novas formas de organização dos arranjos domiciliares, ao mesmo tempo em que diminui o peso social das famílias tradicionais.
IHU On-Line – Quais as principais conclusões a que vocês chegaram em relação à família brasileira no estudo recente que realizaram com base no censo de 2010?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – A primeira grande mudança foi a redução do arranjo majoritário formado por casais (núcleo duplo) com filhos. Em números aproximados, esse tipo de família estava presente em cerca de dois terços (66%) dos domicílios, em 1980, mas caiu para algo próximo de 50% em 2010. Isso aconteceu porque os pais, tendo menor número de filhos e maior esperança de vida, vivem mais tempo na fase do “ninho vazio”, pois os filhos tendem a sair da casa de seus progenitores para formar uma nova família, para morar sozinhos ou para formar arranjos domiciliares com pessoas não parentes.
Casais sem filhos
A segunda mudança – de maneira complementar à primeira – foi o aumento do arranjo formado apenaspelos casais sem filhos e sem outros parentes, que passou de 12% em 1980 para 15% em 2010.
Arranjo monoparental feminino
A terceira alteração foi o aumento do arranjo monoparental feminino (núcleo simples, formado por mães com filhos), que passou de 11,5% em 1980 para 15,3% em 2010.
Arranjo monoparental masculino
A quarta modificação foi também o aumento – ainda que de uma base menor – do arranjo monoparental masculino (núcleo simples, formado por homens com filhos), que passou de 0,8% em 1980 para 2,2% em 2010.
Mulheres morando sozinhas
A quinta transformação foi o crescimento do número de mulheres morando sozinhas, que passou de 2,8% em 1980 para 6,2% em 2010.
Homens morando sozinhos
A sexta foi o crescimento do número de homens morando sozinhos, que passou de 3% em 1980 para 6,5% em 2010. E, finalmente, a sétima mudança aconteceu com a redução do percentual de famílias compostas e extensas (casais, filhos, parentes e agregados) que caiu de 4,8% para 2,2% no mesmo período.
IHU On-Line – As famílias unipessoais são as que mais crescem?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Sim. Mas não é correto usar o termo “famílias unipessoais”, pois, de acordo com a definição das Organizações das Nações Unidas – ONU, uma família é formada por pelo menos duas pessoas e seus membros devem estar relacionados por meio de relações de consanguinidade (parentesco), adoção ou casamento. Dessa forma, pessoas morando sozinhas podem ser definidas como “arranjo unipessoal”, “domicílio unipessoal” ou simplesmente “pessoas morando sozinhas”.
Solidão
De fato, o número de pessoas morando sozinhas tem crescido e deve aumentar ainda mais com o processo de envelhecimento da população. Houve também certa mudança de perfil. No passado, havia uma clara diferenciação geracional e de gênero entre as pessoas morando sozinhas no Brasil, pois entre os homens predominavam aqueles com idade entre 30 e 59 anos, enquanto entre as mulheres em domicílios unipessoais predominavam aquelas acima de 60 anos. Atualmente tem crescido o número de mulheres entre 30 e 59 anos morando sozinhas. Geralmente são as que optam por uma carreira profissional e declinam ou retardam a “carreira” da maternidade.
IHU On-Line – Famílias e domicílios são conceitos equivalentes?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Não. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE define o domicílio como o local estruturalmente separado e independente que serve de habitação a uma ou mais pessoas. Existem vários tipos de habitação, como os domicílios particulares e coletivos, domicílios permanentes e improvisados, etc. A maior parte dos dados coletados do censo se refere aos domicílios particulares permanentes ocupados. Nestes domicílios pode haver famílias nucleares (com núcleo duplo ou núcleo simples), famílias estendidas (com um ou mais de um núcleo familiar e outros parentes) ou famílias compostas (núcleo familiar com parentes e outras pessoas não aparentadas). Pessoas sem laços de parentesco e sem relacionamento afetivo, mas morando juntas (tipo uma república de estudantes), são classificadas como arranjo não familiar pela metodologia da ONU. O número de arranjos não familiares é pequeno, mas cresceu na última década no Brasil. Deve-se ressaltar que até o censo 2000 era possível identificar diretamente as chamadas famílias conviventes, por meio das perguntas sobre as relações de parentesco dos moradores com os responsáveis do domicílio e da família. Mas, no censo 2010, a convivência só pode ser obtida de forma indireta e aproximada.
IHU On-Line – Qual é o tipo de família que mais sofre com as situações de pobreza?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Sem dúvida são as famílias monoparentais femininas, especialmente aquelas com filhos pequenos. Por exemplo, a maioria dos beneficiados do programa Bolsa Família é constituída por este tipo de arranjo. Isso acontece porque é muito difícil para uma mãe combinar, ao mesmo tempo, as funções de provedora e cuidadora. As mães com filhos menores de 15 anos e sem cônjuge não conseguem ter uma inserção integral e permanente no mercado de trabalho, pois precisam dedicar muito tempo às questões de alimentação, saúde, educação e cuidados dos filhos e da moradia. Como resultado, recebem salários mais baixos e precisam dividir uma renda baixa com seus dependentes. Acabam caindo na “armadilha da pobreza” e não conseguem romper com o ciclo intergeracional da pobreza. Nesses casos, além dos direitos básicos de cidadania, o governo deveria promover políticas de conciliação entre trabalho e família, intermediando condições de emprego mais favoráveis e equipamentos públicos para o cuidado dos filhos, como creches, restaurantes e lavanderias coletivos, escola em tempo integral, etc.
IHU On-Line – Que tipo de realidade social se reflete diante do crescimento de casos em que os membros do casal trabalham e decidem não ter filhos?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – De regra, são os casais sem filhos que apresentam renda média domiciliar per capita mais elevada. Um caso particular são os casais sem filhos com marido e esposa participando do mercado de trabalho. Nos Estados Unidos, esses tipos de casais são chamados de Dinc (sigla para Double Income No Children); no Brasil esse acrônimo significa: Duplo Ingresso Nenhuma Criança. O número de famílias Dinc estava em torno de um milhão de casais em 2000 e chegou a 2,8 milhões de casais. Portanto, em 2011 os Dincs somavam 5 milhões e 600 mil pessoas no Brasil. Eles possuem maior poder de consumo e, proporcionalmente, optam por morar em apartamentos nas grandes metrópoles. Praticamente não existem casais Dinc entre os beneficiários do Bolsa Família, pois duas pessoas com renda de um salário mínimo cada um, morando juntas, são classificadas como membros da “nova classe média”. Em geral, o casal Dinc apresenta alta mobilidade social, mas é um tipo de família não procriativa, que reforça a tendência nacional para uma taxa de fecundidade média abaixo do nível de reposição.
IHU On-Line – Como entender que quanto maior o número de filhos, menor o tempo que os maridos dedicam aos afazeres domésticos?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Os dados mostram que existe um forte descompromisso dos homens com o trabalho doméstico. Isso vem desde a época em que Paulo Prado definiu a família patriarcal brasileira como “Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados”. Na divisão do uso do tempo entre os cônjuges, em geral os homens se dedicam mais às atividades produtivas (e remuneradas) e as mulheres se dedicam mais às atividades reprodutivas (e não remuneradas). Isso acontece mesmo nas famílias em que as mulheres trabalham fora e são penalizadas com a dupla jornada. A alocação desigual do tempo é mais acentuada nas famílias tradicionais onde existe uma rígida divisão sexual do trabalho, onde os homens fazem o papel de provedores e as mulheres o papel de cuidadoras. Paradoxalmente, quando o trabalho doméstico diminui a contribuição relativa do esposo aumenta, mas quando os afazeres da reprodução aumentam muito o custo recai sobre as esposas. Isso indica que o maior número de filhos reforça a tradicional divisão sexual do trabalho, com o homem se concentrando na luta pelo “ganha pão” e a mulher assumindo os encargos da casa, da cozinha e dos cuidados dos filhos.
IHU On-Line – O casamento ainda pode ser considerado um anseio universal e um evento para toda a vida?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O casamento é praticamente um evento universal no Brasil, mas somente se considerarmos todos os tipos de matrimônio. Em 1970, 65% dos casamentos aconteciam no civil e no religioso, 14% somente no civil, 14% só no religioso e 7% eram uniões consensuais. Em 2010, o casamento no civil e religioso caiu para 43%, só no civil aumentou para 17%, só no religioso caiu para 3% e as uniões consensuais subiram para 37%.
Casamentos inconstantes
Mas os casamentos ficaram mais instáveis. Nos últimos 40 anos cresceu o número de separações e divórcios. Consequentemente, cresceu o número de recasamentos, especialmente para o caso dos homens. Na pirâmide brasileira existe um superávit de mulheres acima dos 25 anos, pois há uma sobremortalidade masculina por causas externas entre os jovens (especialmente homicídios e acidentes de trânsito). No total, há um excedente de mais de 5 milhões de mulheres na população brasileira e a proporção daquelas sem um companheiro aumenta com a idade, pois, para agravar o desequilíbrio, os homens se casam com mulheres mais jovens. Existe, portanto, um diferencial de gênero e de idade no chamado “mercado matrimonial” brasileiro e um número muito grande de mulheres não encontra companheiro de outro sexo para casamento.
IHU On-Line – Em que medida o aumento das separações e dos divórcios interfere nas mudanças das estruturas familiares?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – Interfere, por exemplo, na formação das chamadas famílias reconstituídas, que são cada vez mais frequentes no cenário nacional. Crescem as famílias em que tanto o marido como a esposa trazem para a nova união os filhos de casamentos anteriores, vindo a se somar com novos filhos que surgem do novo enlace. De repente se juntam filhos, enteados, irmãos, madrasta, padrasto, ex-esposo, ex-esposa e diversos avós. Costuma-se dar o nome de “família mosaico” ao arranjo familiar em que os filhos do casal compõem um quadro formado por irmãos, meio-irmãos e não irmãos, pois os filhos de união (ou uniões) anteriores do marido e da esposa não são irmãos, mas ambos são meio-irmãos dos novos filhos do casal. Dessa forma, nem todos os membros da “família mosaico” são parentes entre si, mas todos têm um grau de parentesco com a prole resultante da união do casal reconstituído. A “família mosaico” é apenas mais um tipo de arranjo familiar dentre o leque de arranjos possíveis, em uma sociedade cada vez mais marcada pela pluralidade e por dinâmicas inovadores, que vão além do modelo padrão.
IHU On-Line – E os novos arranjos, tais como famílias homoafetivas e famílias poliafetivas?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – O Brasil ainda não possui dados suficientes para traçar a evolução destes arranjos. O censo demográfico de 2010, conduzido pelo IBGE, abriu, pela primeira vez, a possibilidade dos casais do mesmo sexo, que moram no mesmo domicilio, serem considerados um núcleo familiar. Os dados indicaram a presença de cerca de 60 mil casais formados por pessoas do mesmo sexo e um deles se declarou como chefe. Mas, se os casais moram em casas diferentes ou nenhum deles se declarou como chefe, não foram identificados pelo censo. As mulheres são maioria nos arranjos homoafetivos, inclusive na homoparentalidade. Portanto, já existem crianças com dupla “maternidade” ou dupla “paternidade”. Também não foi levantada a informação sobre orientação sexual.
Famílias poliafetivas
As famílias poliafetivas se referem aos arranjos familiares cujo núcleo não é monogâmico. São os “casais de 3” ou o “casal de n pessoas”. Pode ser um arranjo formado por um homem e duas mulheres, uma mulher e dois homens (Uma Dona Flor de verdade) ou qualquer outro tipo de arranjo envolvendo mais de duas pessoas no núcleo familiar. Mas o censo não levantou múltiplos relacionamentos. A história mostra que a poligamia e a poliandria sempre existiram de forma mais ou menos velada. A novidade agora é que estes tipos de arranjos estão sendo visibilizados e estão sendo objeto de busca de base legal para serem reconhecidos na legislação brasileira. Existem, inclusive, as famílias poliafetivas cujos membros possuem poliorientação sexual.
IHU On-Line – Em que consiste “a complexidade e a diversidade das relações familiares do Brasil contemporâneo”?
José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi – De modo geral, pode-se afirmar que o modelo hegemônico de família nuclear era formado por um homem e uma mulher que se uniam em um matrimônio por toda a vida e praticavam sexo com finalidade generativa. Esse modelo de família tinha como base o casal heterossexual, ele mais alto e um pouco mais velho, com maior escolaridade, já com um emprego ou independência financeira e ela mais baixa, mais jovem, com menor escolaridade e voltada para a vida privada de dona de casa ou com emprego extradoméstico com flexibilidade e tempo parcial. Esse modelo de família trazia embutida uma forte desigualdade de gênero. A menor autonomia das mulheres na família era geralmente reforçada pela desigualdade social, em especial pela baixa taxa de atividade laboral e pela segregação no mercado de trabalho. O menor poder, a autoridade e o prestígio feminino decorriam da desigualdade de acesso e de controle sobre os diversos recursos econômicos, sociais e culturais. Contudo, esta “família padrão” começou a ruir na mesma época do fim da padronização fordista de produção, ou seja, com a revolução sexual dos anos de 1960, com a disponibilidade de métodos contraceptivos, a entrada crescente da mulher no mercado de trabalho, a reversão do hiato de gênero na educação e a aceitação mais ampla de novos arranjos familiares. Cresceu o número de domicílios comandados por mulheres. Em grande parte, isso se deve ao processo de empoderamento feminino, mas, em outros casos, a chefia feminina é decorrência da ausência do cônjuge e da falta de responsabilização dos pais (homens) com os filhos.
Mudança da sociedade brasileira
As transformações socioeconômicas e as mudanças ideacionais ocorridas nos campos ético, religioso e cultural levaram a uma maior autonomia individual e a uma mudança na relação custo/benefício entre as gerações. A idade média da primeira relação sexual diminuiu e moças e rapazes passaram a ter relações sexuais com mais frequência antes do casamento. Cresceu o número de filhos nascidos fora do casamento (inclusive na gravidez na adolescência). Aumentaram a guarda compartilhada e o número de crianças que vivem em duas casas. Cresceram as famílias homoafetivas e tem entrado na discussão a formalização dos arranjos poliafetivos. Sem dúvida, a sociedade brasileira mudou em termos demográficos e na composição plural das relações familiares. Os diferenciais de gênero e de geração são fundamentais para se compreender a complexidade e a diversidade das relações familiares do Brasil contemporâneo.
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Eu, o outro, o nosso contexto linguístico
Messias Bezerra, graduando em Letras Vernáculas (UEFS), ativista da Pastoral da Juventude e autor do livro Eu Lírico, pela VirtualBooks.
Vivemos num país com dimensões continentais e com uma grande pluralidade sociocultural. Nesse contexto de diversidades, encontram-se as diferentes modalidades dialetais e as variedades lingüísticas, que compõe a nossa Língua Portuguesa.
Ao conversarmos com pessoas de outras cidades, estados ou regiões do Brasil, não é difícil identificar o seu lugar de origem, ou seu meio habitacional. Isso é possível, observando-se as especificidades linguísticas regionais, que cada pessoa transmite, no uso da linguagem, ou seja, do seu dialeto. Frequentemente, muitas piadas são feitas com determinadas maneiras de falar, algumas vezes de forma pejorativa ou exacerbada. Nesse sentido, é importante atentarmo-nos para duas variantes básicas da língua que constantemente estão sendo colocadas em choque. Trata-se da norma culta e a variedade popular.
A variedade linguística culta é aquela que se adéqua às exigências da gramática normativa, utilizada, predominantemente, por uma pequena parcela da população, com maior poder econômico e, portanto, de maior prestígio. A variedade popular ou informal é a língua da grande massa, empregada sem muita preocupação com as regras gramaticais, cujos falantes tiveram uma escolarização precária ou totalmente negada. É preciso esclarecer, contudo, que, embora exista essa divergência entre língua padrão e não padrão, como afirmou o lingüista Ataliba Castilho, nenhum cidadão fala melhor ou pior do que outro. Logo, não existe o falar errado, e sim o adequado e inadequado, dependendo do contexto em que o indivíduo se encontra. Além do mais, ninguém fala sempre a variedade culta, independente da hierarquia social a qual pertença.
Com essa conscientização, é fundamental ficarmos atentos ao tão debatido e famigerado preconceito lingüístico. É imprescindível combater esse tipo de opressão, promover o respeito ao próximo e às diversas formas de se expressar. Todavia, precisamos fazer isso com muito cuidado, para não cairmos nos equívocos do nosso sistema educacional, das generalizações e do alarmismo. É inegável que a nossa deficiência, no uso da nossa Língua, sobretudo na escrita, é o reflexo de uma drástica desigualdade socioeconômica. Contudo, a educação hoje é um direito de todos. Por isso não deve haver mais motivos para não aprender a norma culta, pois esta será sempre cobrada nos momentos formais, e, negligenciá-la, pode nos trazer sérios prejuízos.
Por fim é válido salientar que, a Língua Portuguesa é muito rica e dinâmica, e constitui-se como a maior herança dos nossos colonizadores. Ela é a nossa língua-mãe, e, nos sendo imposta ou não por nossos algozes, dela dependemos para nos relacionarmos e vivermos com mais dignidade. Então, mesmo com todas as suas exceções e complexidades, talvez seja mais fácil conhecer e dominar a nossa Língua à medida que aprendermos a amá-la.
Um nenhum
Viviane Mosé, filósofa.
"Ao arquólogo do futuro"
Senhor arqueólogo, foi muito difícil encontrar um lugar a partir do qual pudesse me dirigir ao senhor. Infinitas são as perspectivas que nosso tempo nos permite, desintegrado que está por tantas razões que não caberiam nesta cartinha. Então, resolvi falar de um lugar comum. O lugar de um homem.
Todo homem é comum mesmo não sendo. O não ser comum do homem parece estar em sua forma própria de ser comum. Em seu jeito singular de sofrer, brincar, envelhecer. Em sua necessidade de construir, simbolizar, criar. Um homem não deixa de ser comum mesmo entre letras, livros, máquinas, sistemas, signos. Um homem é sempre uma trajetória que declina. Que ascende, mas que declina. O comum do homem é sua aparição relâmpago, o seu constituir e o seu perecer. O comum do homem é sua necessidade de dizer, manifestar, inscrever, perpetuar. Ao mesmo tempo sua impossibilidade de permanecer. Todo homem constitui-se na tensão entre viver e morrer, entre dizer e calar, entre subir e descer. Mas, por razões extensas e difíceis, a história humana parece ter se ordenado em torno da vontade de não ser.
Não envelhecer, não sentir dor, não se cansar, não se aborrecer. O homem parece envergonhar-se de ser: pequeno, sensível, mortal, humano. E organiza-se em torno de um ideal de homem, sem corpo. O homem envergonha-se de seu corpo. Não de seu sexo ou de seu prazer, mas de suas vísceras, de seus excrementos, de seus sons e odores, de seu processo bioquímico, fisiológico, orgânico. O homem envergonha-se de morrer e vai acuando-se, escondendo-se, perdendo-se em torno de uma idéia, de uma imagem. Em sua luta por não ser comum, o homem tornou-se nenhum. Todo homem virou nenhum. Nenhum homem na rua, em casa. Nenhum homem na cama. Nenhum homem, mas um nome. O homem se reduziu a um nome. Não um nome próprio, mas um substantivo.
Mas um homem é sempre maior que um nome mesmo que não queira. E uma outra história foi sendo tecida por trás desse desejo de não ser. Enquanto construía seus mecanismos de não corpo, enquanto se constituía como idéia, pensamento, imagem, a humanidade proliferava em seus excessos contidos, em suas angústias não canalizadas, em suas paixões não vividas, em seus pavores maquiados. E um corpo invertido, nascido de tantos corpos abafados, foi constituindo-se socialmente, foi ganhando força e vida. Uma vida invertida, mas uma vida.
Tóxica, ela foi se alastrando pelas casas, pelas ruas, em forma de morte. A morte negada, as perdas e dores abafadas, saíram às ruas reivindicando seu espaço. O que antes esteve circunscrito aos campos de batalha, às margens, aos guetos, agora ganha as escolas, os metrôs, os restaurantes, as praias. Não há mais lugar seguro, carros blindados, condomínios fechados. Agora todos somos igualmente passíveis.
Vivemos a democratização da violência. Vivemos o predomínio daquilo que foi por tanto tempo obstinadamente negado.
A violência trouxe-nos de volta a urgência pelo corpo, pela vida, pelo tempo. E apartou-nos de nosso sonho de perenidade, de futuro, de verdade. Agora, todos estamos órfãos de nosso medíocre projeto de felicidade. Agora é preciso viver, temos urgência do instante, precisamos do corpo, mesmo gordo, magro, estrábico. E aqui, de meu lugar comum, de mulher comum, enquanto lavo a louça do café olhando a cor insistente da tarde que passa, me pergunto por quê? Por que não os dias nublados, as dores do parto, os serviços domésticos? Por que não o escuro, o delírio, a solidão? As lágrimas, os espinhos no pé, as quedas?
Dizem que o homem, como conhecemos, tende a desaparecer. É possível que uma espécie mais forte possa surgir, uma espécie capaz de um dia divertir-se com este nosso hábito demasiadamente humano de negar o inexorável, de controlar o incontrolável, e, não conseguindo, de esconder-se em cápsulas virtuais, em psicotrópicos de ultima geração, em imagens. Um homem que talvez tenha sempre existido pode começar enfim a surgir. Um homem capaz de viver a dor e a alegria de ser mortal, singular, sozinho, comum. Um homem capaz de gritar sua dor impossível. Um homem capaz de cantar. Um homem capaz de viver.
Drogas e Violência
Lucas Willian
Pastoral da Juventude
A violência está impregnada no comportamento social, de forma que ameaça a vida das pessoas, o desenvolvimento humano, e as relações pessoais. A droga, que também há muito está infestada no cotidiano de uma expressiva parcela da juventude jacuipense, aparece como vetor da violência, e conseqüente causa de mortes por tiros, em vias públicas, em plena luz do dia.
A família, que o tempo e os novos valores se encarregaram de fragilizar, não tem a mesma capacidade de outrora de fiscalizar e controlar os jovens, no sentido de impedir que sejam influenciados pelo vício do álcool e das drogas. Adolescentes que são de famílias bem estruturadas, que têm pais conscientes de seu papel, em casa e na comunidade, não se sentem apelados a fortalecer a causa da sobriedade. Terminam, muitas vezes, por se influenciarem e adentram no mundo obscuro da dependência química.
O problema maior das drogas, ainda não é a dependência, mas a criminalidade e a violência que é fruto do consumo de substâncias alucinógenas e tóxicas. Dentre outros comportamentos, essas substâncias, tornam o usuário agressivo, depois que caem na corrente sanguínea e afetam o equilíbrio do cérebro.
Sabe-se que o mercado de drogas não é o único ilegal, mas de longe é o que causa mais prejuízos à sociedade. Não colabora com o caixa público e é fator principal da violência urbana, sobretudo, quando associado ao comércio ilegal de armas.
Os danos sociais que são causados pelo tráfico e consumo de maconha, cocaína e crack, não se resumem à violência. Uma vez viciados, muitos passam a depender do estado para tratar-se de doenças contagiosas que adquirem através do consumo desregrado. Muitos comércios são levados à falência, por estarem em áreas dominadas pelo tráfico. Algumas vezes são forçados a operar em outros lugares, diminuindo os empregos formais, dentre outros prejuízos...
Quanto mais consciência as pessoas, principalmente os jovens, tomam da necessidade de extinguir as drogas do cotidiano, um melhor futuro terá as próximas gerações. Construiremos assim, um ambiente social com menos assassinos de sonhos, menos ladrões, menos suicidas inconscientes, enfim, mais pessoas de bem, com um sentido a dar pra vida e uma meta para cumprir visando uma sociedade melhor.
Para tal consciência nascer e se transformar em discurso popular, isto é, acessível a todos, é preciso, antes de mais nada, que os formadores de opinião sejam capazes e corajosos de implementar novas práticas, já!
Fim do mundo
Antônio Mesquita Galvão
Doutor em Teologia Moral
Adital
O fenômeno conhecido como "fim do mundo” está incluso no estudo da escatologia, aquilo que se chama de "as últimas coisas!” (novíssimus) que abrange morte, juízo, parusia e ressurreição. Muitas pessoas, reportando-se às belezas naturais do planeta, perguntam: "será que Deus vai destruir tudo isso, no fim do mundo”?
As religiões fundamentalistas, as seitas pentecostais usam a simbólica aterradora de um "fim do mundo” para semear o medo e assim acelerar o proselitismo que desenvolvem há anos. A cada ano, cada época, surgem boatos e comentários alarmistas a respeito desses sobressaltos, que depois de expirados os prazos, fica constatado o engodo. Quando morei na Paraíba (80-85) havia uma seita fundamentalista chamada de "borboletas azuis” que previu o fim do mundo para uma determinada data. O dia passou, o mundo não acabou e o grupo, desacreditado, se desfez. Agora, assombram o mundo com as "profecias maias” sobre o fim do mundo.
A maneira correta de designar o mundo é "céus e terra” (cf. Gn 1, 1). O mundo terrestre é chamado de tebel, no hebraico (cf. Jr 51, 15) e cosmos na literatura sapiencial helenista. Tendo saído da sabedoria criadora de Deus, o mundo, organizado como verdadeira obra de arte, é a manifestação contínua da bondade de Deus. No entanto, o mundo físico, a terra, os lugares onde habitam os homens, tem sido contaminado pelos pecados, pelos crimes, pelos atentados à natureza, pela poluição. A poluição ambiental, o desmatamento irracional, o envenenamento de rios e fontes, é um crime contra a natureza, contra o ser humano, e um desrespeito ao Deus da vida.
A história bíblica está repleta de citações e sinais que falam em "mundo presente” e "mundo futuro”. Sob esse enfoque, podemos compreender que o mundo presente é este onde vivemos, desde que a inveja do demônio (e o pecado dos homens) transformou-o para pior, com o surgimento da morte (cf. Sb 2, 24). Esse mundo somos nós, cheios de pecados e seqüelas. O mundo futuro é aquele que será restaurado, quando Jesus vier estabelecer aqui o seu Reino. Em paralelo à transfiguração do homem, ocorrerá a restauração do cosmos. A divisão desses mundos é sensível nas páginas da Bíblia:
Igualmente, algumas expressões do Novo Testamento, como "filhos do mundo” (do pecado) e "filhos da luz” (na graça de Deus) retratam as forças em confronto na terra. Paulo fala em "mundo mau” (cf. Gl 1, 4) para evidenciar o domínio do mal sobre os corações dos homens. Satanás é chamado de "rei deste mundo” (cf. 2Cor 4, 4). O "mundo futuro”, na contrapartida, é aquele em que Cristo vai reinar.
Mas a pergunta não foi respondida. A terra será destruída? A terra, o mundo, com suas belezas, tantas coisas boas, rios, montes, florestas e praias, animais selvagens e domésticos, merecem ser destruídos? Creio que não! A terra é algo de bom, neutra a valor. O homem é que, com sua ação, positiva ou negativa, dá um valor à terra em que vive. O que há de mal na terra, secas, enchentes, devastação, desmatamentos, alteração dos ciclos de vida, são como que um corolário do mau uso que os homens – em situação de pecado – realizaram. Desprezar a natureza, obra de Deus, e templo dos homens, é um pecado. Como obra de Deus, a terra não será destruída, mas restaurada. O homem novo habitará numa terra renovada. É a figura dos "novos céus e nova terra” que trata o Livro do Apocalipse (cap. 21).
Quando Jesus se apresenta como aquele que "venceu o mundo” (cf. Jo 16, 33), não há uma referência à vitória sobre montes, mares e planícies, mas um esmagador triunfo, primeiro sobre o pecado e depois sobre seu salário, que é a morte. Jesus morrendo tirou o pecado do mundo (cf. Jo 1, 29), constituindo-se cabeça da nova criação. O "novo céu” e a "nova terra” (cf. Ap 21) será fruto derenovação cósmica e não de destruição. Ora, se a primeira Palavra de Deus foi de criação, a última, por certo, não será de destruição. No princípio, Deus cria a terra para o homem. No fim, por certo, restaurará a terra para o homem renovado.
Buscando o sensacionalismo, os meios de comunicação, volta-e-meia anunciam cataclismos. O mundo terá fim? Haverá uma catástrofe? Os "sinais” escatológicos indicam a destruição da terra e do universo? O mundo material também será objeto de julgamento? E as ameaças de "fim do mundo”? Toda passagem da vida terrena para o tempo glorificado é uma ruptura só possível pela força transformadora de Deus.
Vai ocorrer um conflito cósmico, um "fim do mundo”? Não creio! Deus não criaria uma obra tão perfeita para depois destruí-la. A resposta sobre o como da parusia, a segunda vinda de Jesus, não têm recebido respostas exatas. Também pudera, é impossível, devido à nossa limitação, estabelecer uma compreensão exata dos desígnios de Deus. E as estrelas que vão cair? Elas são os poderes humanos, os impérios, o reino da "estrela da manhã” (Satanás).
Haverá um fim do mundo, destruição, maremoto, fogo? Não creio! Mesmo porque as palavras da Bíblia precisam ser entendidas dentro do quadro e da situação cultural em que foram escritas. O fogo é uma primeira idéia estóica de transformação e purificação. A história se conclui pela ação transcendente de Deus, que assume definitivamente a vida dos vivos e dos mortos. Isso não acontece em um momento único, mas à medida que as pessoas morrem. As expressões empregadas pelos milenaristasprovação e arrebatamento podem ser vistas pelas dificuldades da vida atual, e a conversão dos que desejam um mundo melhor.
A grande questão sobre o fim do mundogira sob dois eixos. Haverá uma catástrofe (como preconiza a apocalíptica judaica)? Ou uma profunda transformação (hermenêutica bíblica do "novos céus e nova terra”)? Teólogos e exegetas não são unânimes. Para uns há um "grande julgamento”, para outros, o julgamento ocorre na morte. O fim do mundo não é de destruição da vida e do cosmos, como preconizou Nostradamus para 1999 (que acabou não ocorrendo), mas uma restauração do que está em desacordo com o projeto de Deus. Por ser obra de Deus, o mundo, para glorificá-lo, precisa ser transformado.
Em toda a literatura bíblica precisa ser observado o sentido metafórico dos textos relativos ao fim do mundo. As trevas são o oposto à luz de Deus. O abalo dos fundamentos do mundo pode estar ligado ao fim dos reinados de egoísmo, poder, riqueza e luxúria. O cair estrelas pode estar ligado à derrota de Satanás (seus anjos, no Antigo Testamento são referidos como "estrelas da manhã”; são a terça parte das estrelas e, Ap 12). O fogo é um elemento simbólico da purificação (cf. Is 26, 11; Ml 3, 2). A idéia do apóstolo Pedro tem um fundo estóico de influência da apocalíptica judaica, onde acontecerá um grande incêndio cósmico que destruirá a tudo, conforme 2Pd 3, 7.10.12. Trata-se da ekpirossin, a "conflagração universal” de Heráclito, onde, após a purificação pelo fogo, tudo voltará acontecer como no princípio. A essa formulação estóica, que influenciaria Orígenes, a filosofia chama de "leis do eterno retorno”.
Eu prefiro o modelo de T. Chardin que diz que, pelo poder de Deus, o mundo evolui para o bem (campanhas, conscientização, movimentos pela paz, solidariedade). Há a cristificação do cosmos com a adoção de uma consciência amorizada. A humanidade evolui, purifica-se e ocorre a plenitude. É o novo céu e a nova terra (In: Comment je crois, Paris, 1934; as expressões cristificar e amorizar são neologismos de Chardin, hoje incorporados à literatura cristã do século XX). Enquanto não chega o dia da nossa morte, vivemos em tensão com o mundo. É importante, no entanto, não amoldar-se às suas estruturas, mas (cf. Rm 12, 2) converter-se ao projeto de Deus. Até o dia da triagem, os grãos de trigo e as sementes de joio ficarão misturados no mundo. Quando ocorrer o fim de nosso mundo, de nossa vida, Deus nos dará viver a vida plena.
Os ateus, os sensuais, os idólatras, os zombadores e os pecaminosos supõem que só existe este mundo, por isso não esperam "novos céus e nova terra”. Haverá um momento, na hora da morte de cada um, em que não será mais possível o arrependimento, a retratação. Aí será o fim de tudo...
O príncipe deste mundo já está julgado (cf. Jo 12, 31).
Não se trata deste mundo de terras, campos, florestas e mares. Não! Jesus refere-se ao mundo de pecado, de egoísmo e de opressão. Esses astros e estrelas vão desabar... Estes sim, serão destruídos, dando lugar ao novum de Deus. O fim desse mundo de pecado é certo. A cruz de Jesus é parte integrante do julgamento e da destruição da morte e do pecado. A cruz denuncia, desnuda e erradica o mal. O mundo do pecado tem na cruz o símbolo de sua destruição.
A morte de Jesus é um juízo profético sobre a morte do cristão: a morte tem sentido se a vida for consumida no amor. A morte será então consumação do amor. A morte de Jesus é ainda profecia sobre o ódio, sobre as violências e as dores que produzem morte (...). Assim, na cruz e na morte se encontra o escatológico Reino de Deus” (L. C. SUSIN, Assim na terra como no céu, Ed. Vozes, 1995).
O projeto de Deus irá realizar o fim do mundo em que vivemos. O amor vai transformar esse mundo de pecado em um mundo renovado, onde habitarão homens novos. A apocatástase redentora pressupõe uma renovação conforme preconizaram as Escrituras:
Eis que faço novas todas as coisas (Is 43, 19; AP 21, 5).
As realidades cristãs, bem como toda a história humana nos fazem ver que Deus não destrói a pedra, não faz secar a erva ou morrer o animal selvagem sem uma finalidade transformadora, como iria, então, destruir o homem, a quem criou como filho e amigo? Pelos tempos afora, o ensino religioso e a catequese não conseguiu dissipar o temor a respeito desse julgamento, nem estabelecer com clareza uma definição convergente entre o que chamam de "juízo particular” e "juízo final”. Igualmente as teorias a respeito do "fim do mundo” mais confundem que esclarecem.
O juízo, como aniquilamento do mal, vem sucedendo ao longo da história. O autor do Apocalipse usa um vocabulário do profeta Daniel (cf. Dn 7, 9-14). Em Daniel assim como em Paulo (1Cor 15, 25) e no Apocalipse, o último inimigo a ser vencido é a morte. As forças da morte devem ser vencidas pelos cristãos no curso da história. A vitória definitiva será trazida por Deus. O juízo final revela que a entrada no Reino começa pela entrada na comunidade cristã (J. I. ALFARO, O Apocalipse, Ed. Loyola, 1996).
Deus, e ninguém mais, é o autor da nossa salvação, em Jesus Cristo (cf. Hb 5, 9). Nesse projeto, ele deseja dar vida abundante ao homem todo; todas as suas dimensões (física, histórica, social, espiritual, psíquica e cósmica) devem ser salvas. Como autor de toda a criação, ele não quer a salvação só do homem, mas a restauração do cosmo, onde o novo homem vai viver (cf. Ap 21), naquilo que T. Chardin chama de cristificaçãodo cosmo, onde vai ocorrer, ao invés da destruição, o fim do mundo de pecado.
As imagens de um "fim do mundo”, de cataclismo, dias de trevas e de destruição funcionam como que uma figura comparativa, apropriada da apocalíptica judaica, para exprimir como será a frustração do homem se ele tentar construir sua vida sem Deus. A ressurreição do corpo, centro da nossa fé (está contida no Credo Apostólico) revela a propriedade da equação tomista, que agrega ao ser, o corpo, a alma e a graça divina, como realidade indivisível. Santo Tomás, como se observa, não é dualista, mas essencialmente integralista, uma vez que vê o homem como uma só substância, integral. Só há "fim do mundo” quando o mal vence. Por isto Jesus veio, para vencer as trevas, o mal e a morte.
O cristão não deve temer as ameaças de fim do mundo. Deve se preocupar em viver sua vida conforme o projeto divino, longe de pecado e cercado pelo amor. Desta forma nada há que o possa intimidar: Nosso Deus é de criação e não de destruição. Trata-se de uma atitude de fé.
Maconha: legalizar ou proibir? Uma questão de interesse
Messias Bezerra*
A regulamentação da maconha é um tema controverso, que requer abertura da sociedade e muito conhecimento em torno da questão. De fato, é preciso quebrar os tabus e discutir tal assunto de forma clara e responsável. Dessa forma, será possível entender que legalizar uma droga não é o viés mais satisfatório para uma sociedade pensante.
Percebe-se, em experiências de outros países, como Holanda e Portugal, que optaram por descriminalizar a maconha, que essa não foi uma alternativa eficaz, pois também não trouxe efetiva erradicação. O amparo pela lei criou uma idéia de liberdade, que pode estimular o consumo sem medidas. Numa sociedade como a brasileira, com alto índice de população carente, legalizar uma droga significa ajudá-la a refugia-se num abismo de entorpecentes.
Visto que o Brasil apresenta uma realidade diferente, em aspectos econômicos e legislativos, é evidente que a política de combate às drogas também precisa se adequar. Levando-se em consideração a juventude, a classe mais afetada pelas substâncias químicas, a possível solução passa pelo sistema educacional, uma vez que tendo consciência dos efeitos da maconha, como também se criando expectativas de vida para o jovem, este não será atraído pelas drogas. Ademais, o país tem força suficiente para enrijecer a fiscalização e inibir os grandes traficantes.
Havendo esse outro caminho, que pode, no mínimo, diminuir a atuação da maconha, a idéia de legalização torna-se inoperante. Ao contrário do que se pensa, tal iniciativa abre as portas para a liberação de outras práticas danosas ao homem, conduzindo-o a vícios diversos.
* Messias Bezerra é militante da Pastoral da Juventude, estudante de Letras na Universidade Estadual de Feira de Sanatana, autor do livro Eu lírico, pela Editora Virtual Books.
ENTREVISTA
José Lisboa Moreira de Oliveira
O filósofo e teólogo José Lisboa, gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR), da Universidade Católica de Brasília concedeu entrevista on-line, respondendo importantes questões que se colocam ao fazer religioso contemporâneo.
“O mundo avança, as pessoas percebem as coisas com mais realismo e naturalidade e querem mais autonomia e liberdade. Enquanto isso a Igreja Católica insiste em proibir e negar.”
José Avelange – As comunidades virtuais parecem evidenciar o aspecto gregário do espírito humano. Esse seria um indicativo de que é possível haver comunidades cristãs autônomas, mais livres e tão simpáticas e atraentes quanto aquelas que proliferam na internet?
José Lisboa – Pode e já existem. Porém, a condição gregária e a dimensão comunitária da fé cristã exigem o encontro, o contato entre as pessoas. Não podemos viver somente de “virtualidade”, uma vez que este tipo de contato entre as pessoas permanece abstrato e superficial. O ser humano, para ser ele mesmo, precisa se encontrar face a face com um tu. Sem isso ele se perde, se esvazia e se desespera. Não por acaso, apesar do multiplicar-se de comunidades virtuais, aumenta entre as pessoas, particularmente entre os jovens, a solidão e a depressão. É a falta do contato com pessoas concretas, de carne e osso.
JA – Você acredita que a maioria dos católicos que ainda enchem as igrejas no Brasil e na América Latina está em condições de compreender a análise crítica que se faz quanto à instituição eclesial de que participam?
JL – Claro que não. Aliás, as igrejas católicas e evangélicas ainda estão cheias porque as pessoas não desenvolveram o espírito crítico. Não que não seja possível ter consciência crítica e participar de uma igreja. Mas se as pessoas tivessem consciência crítica não mais participariam desses tipos de igrejas que estão por aí. Na Europa, onde a consciência crítica é maior, a deserção das igrejas é bem visível. Só na Alemanha, segundo pesquisas publicadas em 2009, mais de 200 mil pessoas deixam as igrejas a cada ano. No Brasil ainda temos muita gente nas Igrejas porque mais da metade das pessoas é formada de analfabetos funcionais: pessoas que não pensam, não analisam, não têm consciência crítica. Mesmo assim as pesquisas estão mostrando que a frequência de jovens aos templos cristãos está abaixo de 1% do total de jovens brasileiros. Neste caso verifica-se o que o escritor latino Lucrécio disse no século I a.C. na sua obra De rerum natura (Sobre a natureza das coisas): “se os homens vissem que há uma saída segura para as suas tribulações, teriam condição de opor-se às religiões e às ameaças desses adivinhos”. Hoje, muitas dessas condições existem e a tendência das pessoas é se afastarem das igrejas, mesmo permanecendo religiosas.
JA – Como é possível despertar a consciência crítica em leigos e leigas habituados a aceitar passivamente ideias e imposições do clero?
JL – No meu entendimento não é possível. Só quando os leigos e as leigas cortam definitivamente o “cordão umbilical” que os mantêm atrelados aos padres, poderão ter consciência crítica. Neste sentido é fundamental que os leigos mais conscientes e críticos ajudem os outros leigos e as outras leigas a ter consciência crítica. Trata-se de um trabalho difícil e demorado, pois o complexo de dependência foi introjetado neles durante muitos séculos. Por séculos e séculos os leigos e as leigas viram-se como simples “cordeirinhos”, objetos da “cura pastoral dos padres”. Nunca se viram como cidadãos e cidadãs do Reino, como povo de Deus, como pedras vivas da Igreja, como afirma explicitamente a primeira Carta de Pedro (2,4-10). Para romper tal dependência é indispensável que os leigos e as leigas se vejam na condição plena de povo de Deus. Pelo batismo e pela crisma se tornaram cristãos plenos, sem necessidade de pedir permissão alguma e nem a “bênção” dos padres e dos bispos.
JA – Com toda a sua experiência teológica e vivência em diferentes regiões do país e na Europa, como você analisa a Igreja Católica no mundo e no Brasil, hoje?
JL – A situação é muito delicada porque a Igreja Católica não consegue ler os “sinais dos tempos” (Lc 12,54-57), ou, como diz Jesus neste texto, não consegue perceber por si mesma o que é justo. O mundo avança, as pessoas percebem as coisas com mais realismo e naturalidade e querem mais autonomia e liberdade. Enquanto isso a Igreja Católica insiste em proibir e negar. Ao invés de fomentar a autonomia, a liberdade e a responsabilidade das pessoas, prega o medo e a dependência. Ao invés de motivar o exercício da justiça, da tolerância e da solidariedade, se junta e defende os corruptos e pessoas cuja ética é duvidosa. As recentes manifestações contra o papa na Espanha e na Alemanha eram expressão dessa insatisfação. Penso que se a Igreja Católica Romana insistir na contramão da história não terá futuro. Poderá até continuar tendo muitos fiéis, mas não conseguirá mais ser sinal do Reino de Deus. Que sinal pode ser uma Igreja, cujo líder maior foi recentemente acusado de crimes contra a humanidade, junto ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda?
JA – Gramsci dizia que a religião poderia se tornar “o ópio do povo”, mas que ela não era essencialmente isso e admitia a importância do papel que a religião desempenha nas sociedades. Em sua opinião, as sociedades ainda precisam de religião. Por quê?
JL – Antes mesmo de Gramsci, Feuerbach e Karl Max já tinham dito a mesma coisa. Com certeza a religião, há pelo menos 150 mil anos, desempenha uma função significativa nos grupos humanos e sociedades. Neste sentido eu diria que as sociedades precisam da religião, enquanto ela ajuda o ser humano a sair de si mesmo e a ir em busca daquilo que está além dele mesmo. E como a pessoa humana não pode ser feliz e realizar-se plenamente se não for capaz de transcendência, diria que ainda precisamos de religião. Porém, nem toda religião consegue desenvolver tal função. Como Voltaire, sou do parecer que a melhor religião é aquela simples, com pouquíssimos dogmas, que ajude as pessoas a serem mais justas e a não acreditar em absurdos, em coisas impossíveis e contraditórias. A melhor religião, disse Voltaire em seu Dicionário Filosófico, é aquela que não inunda a terra de sangue, que não iguala Deus a um soberano ou um padre incestuoso, homicida e corrupto.
JA – Como é possível explicar o paradoxo entre uma Igreja que está reconhecidamente em crise e que ao mesmo tempo reúne uma multidão de jovens de todo o mundo ao redor do Papa?
JL – Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês radicado na Inglaterra, chama este tipo de comportamento das pessoas, e da atual juventude, de “cultura de cassino”. Sabemos que as pessoas vão ao cassino para jogar, para fazer apostas. Assim sendo, estes grandes eventos dão a impressão de vitalidade, mas, na verdade, expressam claramente a crise da Igreja. De fato, o que caracteriza tais eventos eclesiais é a ausência de sedimentação de laços duradouros. As pessoas ficam encantadas apenas por um instante passageiro. Neles não há nenhuma experiência verdadeira de comunidade. Embora, em princípio, pareça haver muita união entre os membros, na verdade não existe, pois os laços são eternos apenas “enquanto duram”, ou seja, enquanto satisfazem a curiosidade das pessoas. Cessado o evento, as pessoas debandam, os laços se desfazem por completo, pois todos estão tomados apenas pela curiosidade e não pela solidariedade. Terminado o jogo, finda as apostas, o cassino fecha as portas e as pessoas se esquecem por completo do que aconteceu lá dentro, especialmente aquelas que saíram perdendo nas apostas. Portanto, essa “multidão de jovens” em torno do papa é a expressão mais evidente de uma crise, uma vez que o cristianismo não acontece neste momento, mas no dia a dia da vida. E no dia a dia da vida o que está acontecendo? Onde estão os jovens?
JA – O crítico da Igreja costuma ser bastante hostilizado pelos setores mais conservadores e pelos mais ignorantes que parecem enxergar a estrutura como algo por demais sagrado para merecer a crítica. Como você lida com este aspecto de sua atuação filosófica e teológica?
JL – Sem medo e sem me importar com as hostilizações dos que se acham donos da verdade e das chaves do céu e sem preocupações com os que se submetem à dominação eclesiástica. Sempre acreditei no princípio bíblico de que é preciso colocar-se nas “portas dos templos” (Jr 7,1-11) para denunciar as ilusões e as palavras mentirosas de determinados tipos de religiosidade. Isso tem um preço, mas vale a pena.
JA – Na atual conjuntura eclesial, você considera que ainda existem religiosos e leigos que conseguem se aproximar consideravelmente daquilo que é proposto por Jesus, no Evangelho?
JL – Com certeza. São poucos, mas estão por aí. Não aparecem na mídia, nem mesmo na mídia católica, mas continuam firmes. Basta lembrar a figura de Dom Erwin Kraütler, bispo prelado do Xingu, do padre José Ionilton e de Zé Vicente que, apesar do ostracismo no qual são colocados pelo atual sistema eclesiástico, ainda animam a esperança do povo. Estas pessoas formam aquele “pequeno resto” ao qual é confiado o Reino (Lc 12,32).
JA – Frente à crise da Igreja, o que você acredita que deve acontecer no futuro? Haverá Igreja, nesse sentido que conhecemos atualmente, com sua estrutura de poder, por quanto tempo?
JL – O atual sistema eclesiástico foi pensado para durar bastante. Penso que nós que nascemos no século passado não veremos mudanças significativas. Porém, como tem acontecido na história, a realidade forçará a Igreja a mudar. Se ela não mudar morrerá, pois Cristo garantiu a perpetuidade da comunidade de discípulos e de discípulas, seus seguidores, e não, como pensam alguns, a perenidade de um sistema eclesiástico. Além disso, o Espírito de Deus é livre e ninguém o controla, nem mesmo a hierarquia católica. E pode ser que, de repente, ele suscite pessoas, como o santo padre João XXIII, capazes de sacudir a poeira que atualmente ofusca o brilho da Igreja Católica.
JA – Em sua opinião, é necessário apoiar e incentivar a continuidade das comunidades cristãs, ou cada um deve ser encorajado a viver sua fé individualmente?
JL – Recentemente eu e Ana Márcia, minha esposa, escrevemos um livro no qual tratamos desta questão do distanciamento dos cristãos de suas igrejas. O livro, cujo título é Saindo do recinto sagrado (Brasília: Editora Ser, 2011), entre outras coisas afirma que é preciso ajudar-se mutuamente para continuar crendo e sendo cristão no mundo de hoje. Ninguém consegue resistir e viver um cristianismo de fibra, permanecendo isolado. Os que ainda acreditam na força do cristianismo precisam se unir e, deixando de lado as picuinhas religiosas, lutar por um mudo melhor. O cristianismo é feito essencialmente de pequenas comunidades, é a “religião da casa” (At 16,40), na qual as pessoas sentem o calor do aconchego e da ternura. A Igreja dos templos, fria e distante, surgiu a partir do momento em que o cristianismo se uniu ao império e adotou para si os costumes e normas imperiais.
JA – De que forma o católico consciente das contradições e imposições de sua Igreja pode proceder para preservar sua fé e os laços comunitários, sem ser conivente com situações que não estão de acordo com o Evangelho?
JL – Cultivando e mantendo a sua liberdade, a qual é condição para permanecer cristão. O cristianismo é a religião das pessoas livres, das pessoas que não se entregam e nem se deixam manipular. Paulo na Carta aos Gálatas é muito incisivo em afirmar que o cristão que conquistou a sua liberdade não pode voltar atrás e ceder às pressões das falsas lideranças (Gl 5,1), mesmo quando essas pessoas se apresentam como sendo “anjos do céu” (Gl 1,8). Hoje há uma enxurrada de pessoas se apresentando como “anjos de Deus” e o católico tem que ficar de olho aberto para não se deixar enganar. Na verdade o que querem esses falsos “anjos” é propor “outro evangelho” e não aquele de Jesus. O católico consciente precisa andar com os próprios pés, uma vez que, sempre segundo Paulo, aquele que fez uma experiência profunda de Jesus Cristo não precisa de nenhum capataz, de nenhum fiscal para lhe dizer o que é preciso fazer. Ele mesmo sabe como agir, como se comportar. “Chegada a fé, já não estamos sob os cuidados de um capataz” (Gl 3,25).
No princípio, a bênção
Irmão Marcelo Barros
"A teologia cristã nunca negou a bondade das coisas criadas e a presença amorosa do Espírito em todo o universo. Mas, por motivos culturais, acabou se concentrando mais na história do pecado humano e da redenção realizada pelo Cristo. Esta teologia dá pouco espaço ou valoriza menos a relação entre o Espírito de Deus e o universo.
Este Espírito é a energia amorosa que, a cada instante, cria, recria e fecunda tudo o que existe. Nenhum cristão nega a centralidade da morte e ressurreição de Jesus para a fé bíblica, mas procura ligar todas as coisas. Não podemos ver a redenção como se fosse desligada da criação e da presença divina atuante no universo.
Paulo escreve que “onde o pecado abundou, a graça divina foi ainda mais transbordante” (Rm 5, 20). A desordem humana, presente na história, não diminui a beleza e a energia amorosa da vida, bênção divina para todo o universo.
Mattew Fox, teólogo norte-americano, traduz assim o início do evangelho de João: “No princípio de tudo, existia a Energia Criadora. Esta Energia criadora comunicada por Deus como uma Palavra viva (o Verbo) era divina. Por meio dela, todas as coisas foram criadas e nada existe sem esta energia amorosa. (...) Ela (a Palavra que criou tudo) se tornou carne e no meio de nós plantou sua tenda.
Nela, vimos a presença divina, glória que é sua, como Filha única do Criador, cheia de graça e verdade” (no livro In principio era la gioia, pp. 19- 20).
Apóstolos como João e Paulo nos falam que esta energia amorosa é uma comunicação de amor ao universo (uma palavra divina) e teve como máxima expressão a pessoa de Jesus Cristo que assume todo o universo em sua pessoa e se manifesta como presença divina em toda criatura."
Confira artigo completo em https://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=18469&cod_canal=86
Como fermento
José Antonio Pagola
Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreendeu a todos proclamando que nenhum profeta de Israel tinha se atrevido a dizer: "Deus está aqui com a sua força criadora da justiça, abrindo caminho no mundo para tornar a vida de seus filhos mais humana e feliz”. É preciso mudar. Devemos aprender a viver, acreditando nessa Boa Notícia: o Reino de Deus está chegando!
Jesus falava com paixão. Muitos foram atraídos por suas palavras. Outros tinham muitas dúvidas. Tudo era uma loucura? Onde se podia ver o poder de Deus transformando o mundo? Que poderia mudar o poderoso império de Roma?
Um dia, Jesus contou uma parábola muito breve. Ela é tão pequena e humilde que, muitas vezes, pode passar despercebida para os cristãos. Ele diz: "Com o reino de Deus acontece como o fermento que uma mulher pegou e escondeu em três medidas de trigo, até ficar tudo levedado”.
Aquelas pessoas simples entendiam o que Jesus lhes falava. Todos já tinham visto suas mães fazerem pão em casa. Eles sabiam que a levedura fica "escondida”, mas não permanece inativa. Silenciosamente, vai fermentando devagar. Dessa mesma maneira Deus está agindo desde o interior da vida.
Deus não impõe de fora, mas transforma as pessoas de dentro para fora. Ele não domina com o seu poder, mas atrai para o bem com seu amor. Não força a liberdade de ninguém, mas se oferece para tornar nossas vidas mais felizes. Então, se quisermos entrar em seu reino, assim temos que atuar.
Está começando uma nova era para a Igreja. Os cristãos teremos que aprender a viver em minoria em uma sociedade secularizada e plural. Em muitos lugares, o futuro do cristianismo dependerá, em grande parte, do nascimento de pequenos grupos de crentes, atraídos pelo evangelho e reunidos em torno de Jesus.
Aos poucos, aprenderemos a viver a fé de maneira humilde, sem fazer muito barulho, nem dar grandes espetáculos. Já não cultivaremos tantos desejos de poder, nem de prestígio. Não gastaremos nossas forças em grandes operações midiáticas. Buscaremos o essencial. Caminharemos na verdade de Jesus.
Seguindo seus desejos, tentaremos viver como "fermento" de vida saudável na sociedade e como um "sal" que, humildemente, se dilui para dar sabor evangélico à vida moderna. Contagiaremos o nosso meio com o estilo de vida de Jesus e irradiaremos a força inspiradora e transformadora do seu Evangelho. Passaremos a vida fazendo o bem. Como Jesus.
Fonte: Adital.
Canonizações: dois pesos e duas medidas?
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário
Domingo passado, 22 de maio, aconteceu em Salvador (BA) a cerimônia de beatificação da Irmã Dulce, conhecida por seu trabalho com os pobres. Na segunda-feira, ao abrir meu correio eletrônico encontrei a mensagem de um jovem militante, atuante em diversas frentes e movimentos sociais, membro de uma comunidade eclesial de base. Ele manifestava o seu descontentamento com o jeito da Igreja Católica Romana canonizar santos. Estava feliz com a beatificação de Irmã Dulce, mas se perguntava por que a Igreja Católica ainda não beatificou o mártir Dom Oscar Romero e nem o pobre e amigo dos pobres, Dom Hélder Câmara. E me fazia a seguinte pergunta: estaria a Igreja Católica utilizando-se de dois pesos e de duas medidas para as canonizações de santos?
Minha resposta ao jovem foi afirmativa, pois acredito que a sua suspeita tem fundamento. Os fatos, quando analisados com rigor, me dizem que hoje para se fazer um santo são indispensáveis apenas duas coisas: 1) muito dinheiro e 2) que o referido santo não tenha, em nenhum momento de sua vida, questionado o sistema religioso vigente e os sistemas políticos de direita.
Para ler o artigo completo, conheça o blog do autor: https://lisboa-ochamado.blogspot.com
Ecumenismo
Por Dom Demétrio Valentini
A semana de orações pela unidade dos cristãos termina neste domingo de Pentecostes. Mas com certeza ainda continuam os motivos de rezar pela unidade dos cristãos. Pois estamos ainda muito longe do objetivo almejado, de chegarmos a uma unidade essencial na mesma fé em Cristo, na legítima diversidade de expressões eclesiais. De tal modo que se chegue a uma verdadeira reconciliação de todos os cristãos, que resulte na acolhida mútua entre as denominações cristãs, formando uma única Igreja, que cultive expressamente a unidade como condição essencial de legitimidade cristã, e ao mesmo tempo estimule a manifestação da pluriforme graça de Deus.
Pois na expressão da fé cristã existe ao mesmo tempo a exigência do singular, em forma de única Igreja, e a legítima pluralidade da manifestação da graça de Deus.
Conciliar o indispensável singular como o legítimo plural é o desafio que se propõe o verdadeiro ecumenismo, que busca a reconciliação de todos os cristãos, como condição indispensável para o cumprimento da missão recebida de Cristo, expressa por suas próprias palavras: "que todos sejam um, para que o mundo creia”.
O despertar da consciência ecumênica teve início entre os anglicanos. Seus missionários na África se deram conta que a divisão entre os cristãos era um sério empecilho para a pregação do Evangelho. Esta preocupação foi levada para a Conferência anglicana de Edimburgo, em 1910, levando a Igreja Anglicana a assumir o compromisso de trabalhar pela unidade dos cristãos. Desta decisão, foi tomando forma o atual movimento ecumênico.
Ele recebeu um grande impulso como a convocação, pela Igreja Católica, do Concílio Ecumênico Vaticano II. A forte conotação ecumênica deste concílio se deu pelo fato de ter sido anunciado num contexto claramente ecumênico. Pois foi lançado na conclusão da "semana de orações pela unidade dos cristãos”, no dia 25 de janeiro de 1958. Desta maneira, todo o impulso de renovação eclesial, desencadeado por este concílio, teve uma clara conotação ecumênica.
A partir do Concílio, a Igreja Católica assumiu o compromisso de buscar a unidade dos cristãos. Isto se constituiu num grande reforço da causa ecumênica. Com a adesão da Igreja Católica ao ecumenismo, o próprio Conselho Mundial das Igrejas Cristãs, constituído anteriormente, acabou recebendo um novo impulso, como instância facilitadora de diversos diálogos suscitados.
Foram constituídas diversas comissões permanentes de diálogo entre algumas denominações cristãs com a Igreja Católica. Entre elas, destaca-se o diálogo com os luteranos, que chegou a um entendimento pleno em torno da questão fundamental levantada por Lutero, sobre a justificação pela fé em Cristo. De tal modo que não existiriam mais impedimentos teológicos a justificar a separação entre as duas Igrejas.
Ao mesmo tempo, a nova relação com os luteranos acabou evidenciando como é lento o caminho da plena reconciliação eclesial. Ela é mais complexa do que a dimensão teológica. Demanda providências de ordem estrutural entre as Igrejas, de tal modo que se efetive a unidade desejada.
Foram muitos os passos positivos, dados a partir do novo clima que tomou forma irreversível com a adesão da Igreja Católica ao ecumenismo.
Ao mesmo tempo, o panorama eclesial foi se complicando, com o surpreendente eclodir de milhares de denominações cristãs, surgidas no seio do pentecostalismo, que vão na contramão da unidade eclesial. Hoje o panorama eclesial, decorrente desta multiplicação de novas denominações cristãs, mais se parece com uma galáxia em frangalhos, do que um cosmos na harmonia de sua diversidade.
Com isto, está posto o desafio, de renovar a proposta ecumênica, levando em conta esta nova realidade eclesial. Uma causa difícil, que precisa ser pavimentada pela abertura de espírito, pelo diálogo, e pelo compromisso de autenticidade na vivência do Evangelho. Como constata o documento do concílio, na medida em que as Igrejas se aproximarem do Evangelho, mais próximas se encontrarão entre si.
O caminho do ecumenismo é, portanto, o caminho da vivência do Evangelho de Cristo.
Fonte: www.adital.com.br